A cigarra e a formiga – Fábulas pós modernas

-Pelo que posso ver da sua ressonância, a senhora está com escoliose lombar grave.

Pensou em pedir um atestado, mas era óbvio que não seria concedido assim por tão pouco. Ela sabia que com aquele trabalho extenuante de sol a sol, carregando no lombo duas vezes o próprio peso, não poderia ser diferente.

Com tanta tecnologia disponível em outros reinos, guindastes, tratores, roldanas e drones, como podia a rainha ser tão atrasada na implantação de medidas de proteção aos trabalhadores? Nem mesmo ginástica laboral tinham acesso por aquelas bandas.

Encaixou uma enorme folha nas costas, muito maior que o tamanho do próprio corpo e parou de resmungar para o fôlego não acabar antes da hora.

– Pelo menos me protegerei do sol, pensou a formiga, enquanto seguia a marcha incansável de suas companheiras, barranco acima.Fala dona formiga, e esse sombrero que você arrumou, é de que planta? Pelo formato, marijuana não há de ser, infelizmente.

Ora não seja besta, que a gente não leva esse tipo de coisa pro formigueiro…

Ah, não sabem o que estão perdendo. Dá uma ótima relaxada…

Nem precisava né, relaxamento é com você mesma… Mas não sabia que precisava desses incentivos.

Toda cigarra adora um cigarro. E nem estou falando do sexo oposto.

Eles devem ser bons de cantada.

Pena que apenas nisso. Cantam endoidecidamente feito uma gaita de fole distorcida e depois quando conseguem a missão, desencarnam pra outra dimensão.

Sinistro, e você o que anda fazendo da vida?

Cantando.

Nossa, que novidade incrível dona cigarra.

Não seja irônica, é muita pequenez da sua parte. Para seu governo fui finalista do The Voice.

Uau, que bacana. Pena que não conseguiu ganhar.

Fui injustiçada, acho que a sirigaita da cantora do Nação Zumbido subornou o jurado.

Bom, preciso continuar minha caminhada porque esse papo não conduz a nada.

Que vida estressante essa sua. Trabalhinho de formiga, hein?

Trabalho de escrava você quer dizer.

Entra com uma ação trabalhista contra a Rainha que fica só lá no bem bom.

Não posso, é contra os meus instintos. Além do que, aqui não tem esse negócio não. Mas pelo menos a gente não passa fome no inverno. E você não se preocupa com isso?

Bom, eu estava contando com o prêmio de quinhentas gramas do The Voice, mas agora ferrou tudo.

Então porque não me ajuda a carregar essa folha e fica com metade?

É contra o meu instinto, dona cigarra. Mas posso ir cantando para tornar sua caminhada mais alegre e sua triste sina menos deplorável.

Deplorável é essa canção monocórdica com jeito de gaita de fole enguiçada.

Se for pra me sujeitar a esse trabalho de escrava prefiro aceitar as propostas que venho recebendo.

Que propostas?

Para cantar em casamentos, bailes de debutantes, essas festas bregas de cigarras novas ricas.

Bom, se não ganhou o The Voice e nem é uma nova rica, vai morrer cigarra velha e pobre.

Pobre mas não serei escrava de uma rainha egoísta e ditadora.

Espero que suas convicções lhe alimentem no inverno que se aproxima.

E eu espero que a Rainha lhe ofereça alguma bolsa folhinha para quando sua escoliose não permitir mais você executar triste sina de carregadora de folhas.

E eu espero que você repense a participação nos bailes de debutantes.

Não repensarei. Prefiro morrer cantando a viver sofrendo.

Só lhe dou um tapa porque estou com tendinite nas patas. Mas o Inverno lhe dará o castigo devido.

Creio que não, dona formiga. Teremos mais um inverno quente por conta do aquecimento global e do El Niño, dona formiga.

Passar bem.

Passar bem.

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