Bob Marley

RastafariBob Marley nasceu Wanduílson de Almeida Santos. Sétimo de uma prole de oito que despejaram no mundo Wilson e Vanda. Quase não sobreviveu ao parto, prematuro que era. No cartório de registro civil, virou Wanduílson Expedito, em homenagem ao santo pelo qual a mãe dobrou joelhos, semanas a fio, a fim de salvá-lo.

Wanduílson virou Bob Marley lá pelos 16 anos, época em que Vanda já tinha desistido de salvá-lo, e Wilson se afundado na cachaça. Ganhou o apelido pelo cabelo dreadlock, pela aparência jambrada de sua indumentária rastafari e pela destreza com que enfileirava reggaes em seu surrado violão Tonante. Mal falava o português, mas cantava com perfeição o imperfeito inglês jamaicano.

Soturno, não conseguia ser mais do que um morto vivo durante o dia. À noite, rompia num frenesi fulguroso, tomando de assalto ruas e praças com seu reggae envolvente, sua ginga malandra e seu bafo de marola. Recolhia-se apenas quando as últimas estrelas cansavam de enfeitar o céu do hemisfério sul.

Sedento, mergulhava nas drogas como quem procura um tesouro escondido nas profundezas do Mar Morto. Consumia as coisas da noite com a mesma voracidade com que era dragado para dentro de seu interior escuro e quente.

Custou-lhe caro o ingresso para tantos paraísos artificiais. A alegria efusiva, quimicamente turbinada, aos poucos deu lugar a comportamentos estranhos, vizinhos da esquizofrenia. Jurava que andava na companhia de outros seres e ouvia sons no silêncio. Devaneios que viravam delírios, que às vezes viravam surtos psicóticos. Surtava, mas não desafinava, em sua trilha dissonante rumo ao seu precipício particular.

Um dia, de tão transtornado, achou que podia voar, e se jogou com seu violão do alto de um morro, encimado por uma cruz em homenagem ao santo padroeiro da cidade, enquanto cantava os versos:

Won’t you help to sing

These songs of freedom?

‘Cause all I ever have

Redemption songs

Viu a tinta descascada do teto branco apenas uma semana depois, quando saiu milagrosamente do coma. Doutor Marcos disse que foi salvo pelo tampo do violão, que impediu um traumatismo craniano mais severo e irreversível. Dona Vanda tem certeza que foi salvo pelas orações. Pelas mãos do Santo ou do Tonante, Bob Marley nasceu pela segunda vez na mesma mal cuidada UTI da Santa Casa onde 25 anos antes escapara do anjo da morte.

Resolveu sepultar Bob Marley ali mesmo. Voltou a ser Wanduílson. Agora em versão convertida. Entregou-se à cruz e ao credo com a mesma volúpia e fervor com que abraçara o reggae. Tomou banho, juízo e cortou as tranças. Viciou-se em religião.

Trocou as drogas pela bíblia e a noite pelo dia. Inabalável, passava manhãs e tardes sob sol inclemente, com seu mal cortado terno preto herdado do pai (vencido pela cirrose um ano antes) recitando incansavelmente passagens bíblicas no coreto da praça, fingindo ignorar a solidão da multidão que insistia em lhe prestar desprezo.

Wanduílson sempre foi um sujeito intenso. O fervor virou fanatismo, transfigurando-se ocasionalmente em uma espécie de transe. Passou a ouvir vozes. Era um chamado, estava certo.

Um dia, tomado de uma certeza e serenidade inquebrantáveis, subiu no alto de uma das montanhas que emolduravam a pequena cidade. Sentia o chamado do anjo como um sopro de paz e liberdade. Jogou-se na imensidão do nada enquanto entoava versos de seu hino predileto, “Some glad morning when this life is over, I’ll fly away”, que ecoaram no éter por alguns intermináveis instantes.

E nunca mais se ouviu a doce e aveludada voz de Wanduílson.

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