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Fake news

Durante muito tempo da minha vida ouvi dizer que manga com leite matava. Não sei bem como adquiri essa crença, mas foi algo construído e repassado por uma multidão de pessoas ao longo da minha infância, como se fosse verdade absoluta.

Nunca entendi muito bem a alquimia bizarra que faria com que dois alimentos altamente recomendáveis, o sagrado leite e a saudável fruta, virassem um veneno mortal quando ministrados em conjunto. Se misturar ambos no liquidificador significava uma sentença de morte irrevogável, quanto tempo eu deveria esperar para tomar leite depois de comer manga e vice versa?

Na dúvida, melhor não arriscar. Nunca as duas coisas num mesmo dia.

Mais novo ainda ouvia relatos aterrorizantes de monstros que se instalavam debaixo da cama das crianças que insistiam em não dormir, ou então daquelas que o faziam sem tomar banho.

A reprodução de notícias falsas é portanto tão velha quanto nossa história é capaz de catalogar. As fake news só são novas no nome e no formato.

Anos atrás, muito antes do WhatsApp, quando uma tia sexagenária acabara de descobrir os encantos das correntes enviadas por e-mail e dos poderes encantadores dos slides de Power Point cheio de fotos de gosto duvidoso, recebi um desses anexos com o sugestivo título de “Como o Brasil é maravilhoso”. Instigado pelo assunto, acabei abrindo o anexo, que continha uma sucessão de fotos de magníficas paisagens de cânions, suspeitamente familiares. Itaimbezinho? Xingó? Guartelá? Capitólio?

Não, sem chance. Pouca vegetação, coloração em vermelho dégradée e uma extensão curvilínea que em nada se assemelhava aos cânions brasileiros. Enquanto isso, em garrafais letras “comic sans” (a escolha não deve ter sido aleatória) os slides exaltavam o esplendor das belezas naturais do Brasil e o absurdo de brasileiros viajarem para o exterior tendo toda essa maravilha aqui mesmo no Brasil. Numa das últimas fotos, já consciente do erro geográfico crasso, dei zoom na logomarca de um ônibus estacionado ao fundo: Grand Canyon Tours.

O Brasil de fato é lindo e tem paisagens magníficas em praias, montanhas, florestas, cataratas e até mesmo em cânyons. Assim como os outros países têm o seu repertório de atrações, já que não temos o monopólio da beleza no Planeta Terra. Mas aquelas fotos, especificamente, não eram do Brasil, eram dos Estados Unidos.

Fake News sempre existiram, fruto da ignorância, do preconceito ou de uma arquitetura deliberada para obter alguma vantagem frente a algum inimigo, real ou imaginário. E quase sempre precisaram também de algum solo fértil para se propagarem. É uma via de mão dupla.

Mas o que seria verdade? Uma constatação objetiva ou uma construção social submetida aos meandros insondáveis (e mutantes) da subjetividade humana?

E a publicidade, onde se encaixaria nas trôpegas linhas que tentam convencer de que o produto é o melhor do mercado, mesmo quando não é? Exagerar os pontos fortes e obliterar os pontos fracos é o que? Half News? É provável que a publicidade seja menos nociva porque o usuário já tem no seu radar que naquele jogo publicitário o objetivo é seduzi-lo usando as armas à disposição. Os escudos antimísseis já estão ligados.

No caso de supostas “notícias” o artifício é mais perigoso porque muitas vezes o usuário as consome sem o mesmo crivo crítico que tem quando recebe uma oferta comercial.

É provável que a gente se adapte e desenvolva filtros para lidar com os embustes variados que nos rondam, e agora atingiram um nível inédito de intensidade por conta das redes sociais e do WhatsApp.

A cautela mais óbvia é desconfiar de tudo que ultrapassa os limites da razoabilidade, ainda que a criatividade humana seja pródiga em desafiar esses limites.

Quase todo mês recebo e-mail de algum “príncipe africano” pedindo ajuda para repatriar uma fortuna não declarada de dezenas de milhões de dólares, em troca de uma generosa retribuição. Nunca foi necessário acionar o FBI ou a Polícia Federal para desconfiar da lunática tentativa de estelionato internacional.

Fake News sempre existiram e desconfio que continuarão existindo, agora em escala aumentada.

Alguns anos antes de criar sua primeira conta de e-mail, aquela mesma tia que me enviou os slides do Grand Canyon fez um depósito a um pilantra desconhecido que a convenceu numa simples ligação de que ela tinha sido sorteada numa promoção do Baú da Felicidade (mesmo sem que ela tivesse comprado o carnê) e ganharia um caminhão cheio de móveis e eletrodomésticos, após aquele depósito das taxas de frete das mercadorias.

Está esperando o caminhão até hoje. Enquanto isso, não para de me enviar notícias de todo tipo. Agora pelo WhatsApp.

E eu, sabichão mas precavido, continuo não misturando manga com leite.

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