Informação, privacidade e biografias

A biografia que o Rei não gostou

A biografia que o Rei não gostou

Gosto de ler biografias. É uma forma de poder conhecer um pouco da história de personalidades marcantes, exóticas, extravagantes ou que de alguma forma sejam ou tenham sido relevantes no ambiente político, empresarial ou cultural de um país.

Boas biografias podem ser divertidas, profundas ou perturbadoras. Contam histórias que vão além do próprio biografado. Podem inspirar mudanças, servir de exemplo ou contra-exemplo. Mostram o ser humano por trás do mito.

Tudo isso já sabemos, eu, você e a torcida do Flamengo. Mas o tema ganhou inédita emergência com um projeto de lei que pretende regulamentar a publicação de biografias, e a manifestação de um grupo de artistas, liderados Gilberto Gil, Caetano e Chico Buarque (ironicamente vítimas da censura do regime militar), desejosos de impor limites à publicação desses livros sem a autorização do biografado, além de prever uma contrapartida financeira para o artista ou sua família.

A polêmica contrapõe dois direitos consagrados pela constituição: o direito à liberdade de expressão e o direito à privacidade. É um assunto complexo e de profundas implicações jurídicas, e se eu tivesse um pingo de prudência não me atreveria analisar. Mas não tenho.

Se por um lado a sociedade tem o direito de se informar sobre personagens públicos, não se pode negar o risco de uma abordagem sensacionalista da vida destes, com o afã mercantil de gerar visibilidade através da promoção de escândalos e de episódios pouco lisonjeiros – verdadeiros ou não – da vida dessas celebridades.

A polêmica é curiosa numa época tão exibicionista como a nossa, em que expomos nossas vidas e entranhas a qualquer pessoa no Facebook, em que tanta gente tenta obter a fórceps seus 15 minutos de fama. Vivemos vigiados, 24 horas por dia. Câmeras nos filmam em todos os lugares e situações, mesmo nas mais constrangedoras. Já sabem o que lemos na internet, onde gastamos nosso dinheiro ou por onde dirigimos nossos carros. O Obama já sabe mais da Dilma do que ela mesma sabe de si.

No mundo artístico isso é mais antagônico. O cara passa a vida inteira se matando para ficar famoso e quando consegue coloca uma peruca loira, óculos de sol gigante modelo vespa assassina e barba postiça, para que não seja reconhecido e possa usufruir do prazer do anonimato que gozava antes da fama que tanto lutou para obter.

Mas é assim mesmo, estamos sempre em busca daquilo que não temos no momento.

Eu particularmente sempre achei patéticas as revistas que mostram celebridades fazendo compras no supermercado ou empurrando um carrinho de bebê. Entendo que deva haver limites para essa invasão de privacidade. Não tenho nenhum interesse em saber esse tipo de idiotice fútil.

Mas há o reverso da medalha. Parte da indústria milionária que alimenta o show business é movida pelo interesse midiático que essas celebridades despertam. Cachês galácticos jamais seriam viáveis para artistas low profile ou que primassem pela discrição e baixa intensidade de contato com a mídia ou o público. Um artista musical top de linha chega a ganhar até 300 mil reais em um único show de 2 horas. E ainda que você deduza dessa soma despesas, impostos, comissões ou intermediação, ainda assim é uma soma inacreditável quando se multiplica isso por centenas de shows num único ano, além de comerciais de TV e outras remunerações indiretas. Grandes atletas idem, e não apenas pela performance esportiva. Garrincha era genial, mas morreu pobre. Tudo isso só é possível devido ao marketing e à sociedade midiática em que nos transformamos. A perda da privacidade é apenas um efeito colateral dessa exposição desmedida. Infelizmente, não dá para conciliar as duas coisas. Ter os luxos, benesses e fortuna de uma estrela da mídia e usufruir da privacidade de um Zé Ninguém. Parece óbvio que o direito à privacidade tem uma elasticidade que guarda relação com a posição que o sujeito ocupa na sociedade. Meu direito a privacidade será sempre maior do que o do Neymar, que aparece na minha sala a cada break comercial, vendendo de linguiças a telefones celulares.

Exigir que toda biografia receba o aval do biografado ou de sua família pode ser contraproducente. Quero ler uma biografia que seja verdadeira, que mostre a pessoa em toda sua complexa gama de defeitos, qualidades, erros e acertos que afinal tornaram sua trajetória única. Eu jamais vou comprar uma biografia que retrate um Maluf ilibado ou um Cazuza abstêmio. Biografias valem pelo relato verdadeiro e um enquadramento isento não se faz apenas com elogios.

Além disso, muitas dessas personalidades fazem parte da história do país, proibir biografias seria uma forma indireta de censurar a história. Parte do conteúdo de uma biografia é construída a partir da compilação de informações de notório domínio público, como reportagens, depoimentos, vídeos e entrevistas. Sob esse ponto de vista, uma biografia seria apenas a extensão de um material jornalístico.

Parece mais sensato permitir a edição de biografias mesmo sem a autorização do biografado, preservando-se o direito do biografado ou seus herdeiros ingressarem na justiça para reparar algum dano em que a publicação possa eventualmente ter cometido.

Toda essa celeuma mostra muito da biografia de um país ainda em transição. Democrático por fora, conservador por dentro.

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