Los Roques. O paraíso sem photoshop

los_roquesCético, e de pensamento cartesiano, não admira que Abelardo tenha feito faculdade de Engenharia. Para ele, tudo tinha que ser certinho, dois mais dois somando sempre quatro vírgula zero, ou algo estaria irremediavelmente errado. Precisar era preciso. Amante das regras e da previsibilidade binária, dormia e comia nas horas certas e seu guarda-roupa tinha divisão por dias da semana. A vida se encaixava numa matriz XY.

Abelardo era cético com relação às promessas da publicidade, produtos perfeitos, deusas oníricas em propagandas de cerveja, e praias paradisíacas. Para ele tudo não passava de uma versão adulterada da realidade. Truques pós-modernos de Photoshop e marquetismo. As deusas para ele eram cyborgs turbinados cirurgicamente, e fatalmente alguma revista de fofoca descobriria uma celulite fugidia no meio de farta perfeição, os quartos de hotel eram sempre menores do que nos folders e sites, e as águas das praias eram sempre menos azuis e transparentes do que aparecem nos posters das agências de turismo. Praias paradisíacas, para Abelardo, ou eram uma subversão photoshopiniana da realidade, ou eram extravagâncias hedonistas somente acessíveis a celebridades excêntricas do mundo artístico.

Numa manhã ensolarada de setembro, antevendo que as milhagens do cartão de crédito estavam na iminência de expirar, decidiu que viajaria para comemorar seu próximo aniversário.

Cartesiano que era, resolveu analisar qual seria o melhor “retorno-por-milha”. Vasculhou o mapa e as rotas, rastreou todos os destinos possíveis, e concluiu que Caracas era o máximo que poderia voar gastando suas 20.000 milhas. Como não sabia muita coisa sobre a Venezuela, consultou sua coleção de revistas de viagem (caprichosamente catalogadas e cronologicamente dispostas em sua estante, sequencialmente, de baixo para cima, da esquerda para a direita). Não encontrou muita coisa, além de vagas menções a um arquipélago chamado Los Roques. As praias pareciam muito bonitas, mas tinha certeza que eram fruto da genialidade de fotógrafos profissionais, que conseguem extrair beleza até da Marginal Tietê em dia de enchente, aliados a boa dose de retoques gráficos. Mesmo assim, lhe pareceu a melhor opção de viagem dentro da Venezuela.

Mal desembarcou em Caracas, e a própria agente da imigração tentou vender-lhe bolívares fuertes, oferecendo uma taxa melhor do que a que supostamente conseguiria na casa de câmbio, e ainda alertando que os cambistas informais não eram confiáveis, poderiam repassar cédulas falsas. Assustado com o assédio inusitado declinou da oferta, e entrando no saguão do aeroporto, uma horda de cambistas informais partiu para o ataque, oferecendo taxas que variavam de 2,5 a 5,0 bolívares por dólar, enquanto a cotação oficial não passava de 2,15.  Ainda martelava em sua cabeça os avisos terroristas da agente de imigração: “cuidado com os cambistas”… Amante das regras, do previsível e de tudo que era matematicamente certo, aquilo era o inferno para ele. Começou a se arrepender da empreitada, se questionando porque não usara suas milhas para visitar a tia hipocondríaca em Mossoró. Fazendo uma média ponderada, decidiu trocar seus dólares com o cambista que oferecesse uma cotação mais próxima do “ponto médio” entre 2,5 e 5. E trocou seu dinheiro por 3,75, sob o olhar incrédulo daqueles que lhe ofereciam mais por seu dinheiro.

Chegou em Los Roques na manhã do dia seguinte, após chacoalhar 30 minutos dentro de um teco-teco apertado. A italiana da pousada o esperava com um sorriso no rosto, e panquecas quentes na mesa. Achou estranho, porque pelas regras da hotelaria não teria direito a esse primeiro café da manhã. Agradeceu e fartou-se. O barco partiria em poucos minutos, e para a ilha mais distante do arquipélago, Cayo de Água, segundo a dona da pousada, uma das mais belas do local.

E lá se foi o intrépido Abelardo pelos mares da Venezuela. O “comandante” da lancha, certamente algum piloto de F1 frustrado, parecia querer voar sobre o mar revolto. Abelardo se perguntava se não haveria regras a seguir, ou algum procedimento padrão de segurança naquelas plagas. Mas o fato é que os diferentes matizes de azul daquelas águas fizeram-no esquecer das regras e da segurança, e concentrou-se em curtir o visual.

As ilhas se sucediam e Abelardo ia ficando mais embasbacado com as súbitas diferenças de tonalidades, que iam do verde claro ao azul profundo, numa profusão de cores espantosa, sem padrão lógico aparente. Mas ele já nem prestava atenção na falta de lógica cartesiana das águas roquenhas.

Desembarcando em Cayo de Água Abelardo teve uma experiência quase religiosa: era tudo verdade! Lá estava aquela imensidão de areia imaculadamente branca, alguns poucos guarda-sóis coloridos, e o mar azul translúcido, em ambos os lados da ilha. Abelardo se sentiu no meio de um pôster de agência de turismo, e sem photoshop. Pulou saltitante e pateticamente na água, podia ver o dedão do pé de tão clara que era. Não acreditava no que via: aquele mar de piscina, igual ao que sempre vira nos anúncios, e que nunca imaginou um dia ser merecedor de usufruir. Para completar o cenário idílico, uma passarela de areia em meio a 2 praias. De um lado mar azul clarinho, de outro, mar verde clarinho. Mais ou menos isso, não importa. Abelardo ia e voltava, jogando-se ora de um lado ora do mar ora do outro, num frenesi descontrolado. Dava gritos e chutava a água em pequenos acessos que se assemelhavam a faniquitos incompreensíveis, como surtos de alegria represada pelo ceticismo cartesiano. Já chamava a atenção dos poucos turistas europeus que estavam na mesma praia.

Era seu aniversário e ele tinha descoberto o paraíso. Merecia ser feliz.

Chegou na pousada no início da noite, onde havia focaccias italianas e cervejas venezuelanas esperando os hóspedes. Abelardo bebeu uma Polar atrás da outra, como se fosse água. Passou a arriscar uma conversa com australianos, suíços, espanhóis e italianos, misturando portunõl, inglês mequetrefe, fragmentos de italiano, esperanto, ou seja lá o que fosse aquela língua híbrida que arriscava. Lá pelo meio da noite, já estavam todos cantando parabéns para ele, simultaneamente e em diferentes línguas. Abelardo se transformara no centro das atenções. Embalado por vinho de primeira e rum de quinta, Abelardo dançou, cantou e gargalhou. Naquele momento, se alguém lhe perguntasse quanto é dois mais dois juraria de pés juntos que é sete. Vírgula trinta e sete, talvez, quem sabe.

Mesmo sem molejo algum, foi instigado pelos gringos a dançar samba (Brasil! Ronaldinho! Samba!), e não se fez de rogado. Puxou a italiana de coxas grossas para sambar, e segundo lembra, sambou como se fosse um passista veterano da Estação Primeira da Mangueira, maravilhando os gringos, que aplaudiam freneticamente sua desenvoltura desengonçada.

E o implausível se fez. Foi dormir bêbado, trôpego, feliz, e pela primeira vez na vida sem tomar banho.

Os dias se sucederam numa profusão de praias, ilhas, tons de azuis, performances de rumba e delírios etílicos. Ah, como era bom viver longe das regras !

Mas as férias têm uma regra, que diz que elas sempre acabam, e assim chegou o dia de ir embora. Inconformado, Abelardo tentou junto a empresa aérea remarcar seu vôo de volta para alguns dias depois, sem sucesso. A atendente explicou que pelas regras, um vôo com milhagem não pode ser trocado de última hora, ainda que existam assentos disponíveis no avião. Eram as regras e tinham que ser cumpridas. Abelardo amaldiçoou todas as regras, e jurou que voltaria a Los Roques.

Dizem que foi visto alguns dias depois tomando rum e dançando salsa num bar da Lapa, portando uma vistosa e esdrúxula tatuagem de Pelicano no braço esquerdo.

 

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