(Re) Legião Urbana

Não é Vivaldi, mas é um clássico nacional

Não é Vivaldi, mas é clássico nacional

Por resolução própria, fazia muito tempo que não ouvia nada da Legião Urbana. Já gostei demais, mas como muitas coisas que a gente gosta, tem horas que alguma coisa fica para trás e só nos resta virar a página. É virando páginas que a gente lê outros livros.

Seja como for, por obra do acaso, numa solitária viagem de carro, recentemente acabei ouvindo de novo e sem interrupções o álbum “As 4 Estações”.

Assim como o título sugere, o cd alterna diferentes andamentos e estações. Vai do lirismo barroco de Monte Castelo à crueza rockeira de Feedback song for a dying friend. Da depressiva Pais e Filhos à acelerada 1965.

Mas ouvir esse disco desapaixonadamente (e até com uma ponta de má vontade, admito) me fez perceber sutilezas antes ignoradas. A principal delas é o flerte com a morte, já que esse foi o primeiro álbum de inéditas após Renato Russo descobrir que tinha Aids, o que nos anos 80 equivalia a uma irrevogável sentença de morte.

Somos cabras marcados para morrer. Sabemos disso desde o nosso primeiro dia de vida, gravado que está em nossa moleira. Mas a iminência da morte é uma coisa muito mais poderosa e devastadora do que a mera certeza de uma morte que não se sabe para quando foi agendada.

O disco inteiro trafega nesse fio condutor. Citações bíblicas, passagens budistas, transcendência, amor incondicional, tessituras oníricas… tudo compondo o belo mosaico de um artista perturbado com seus fantasmas. A urgência de dizer o que precisa ser dito antes que a vida escorra pelos magros dedos das mãos. Não é a toa que o disco se inicia com os versos “Parece cocaína/mas é só tristeza” e termina implorando o perdão divino: “Cordeiro de Deus que tirai os pecados do mundo/Tende piedade de nós/Dai-nos a paz”.

O álbum traz canções memoráveis. Eu era um lobisomem juvenil é um caso a parte. Monte Castelo mistura a poesia de Camões com trechos bíblicos. O disco consegue a proeza de não soar piegas mesmo repleto de passagens doces e românticas. Nem soar panfletário mesmo com tanto engajamento a rigor questionável. Mistura rock com orquestração árabe. Bíblia com Camões. Confissão e redenção.

A história da arte é farta em mostrar que momentos de crise e perturbação pessoal são excelentes combustíveis para a criatividade.

Em 1990, tive o raro privilégio de assistir a um show da banda, notória pela escassez de apresentações. Duas horas e meia de catarse coletiva. Um Renato Russo tripolar, visivelmente transtornado e com o magnetismo de um líder ecumênico. Um show intenso, visceral e até um pouco perturbador.

Ao som dos últimos acordes de “Se fiquei esperando meu amor passar” encerrei, depois de muitos anos, a audição desse disco que à época me marcou.

Tão satisfeito quanto saciado, guardei reverentemente o cd em sua caixa prateada. Não é um álbum para se ouvir a toda hora, nem tampouco para se jogar fora.

Virei a página, mas guardei o livro.

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