Dévora

Débora era uma menina que vivia numa terra muito bonita e distante, isolada do resto do mundo por um vale de montanhas lindíssimas.

Quem olhasse Débora em toda sua formosura, com seu rosto quase infantil e seu diminuto e curvilíneo corpo, jamais poderia imaginar o monstro que habitava aquela pacata menina.

Dentro de sua minúscula barriga havia um ser insaciável que devorava tudo que aparecia pela frente.

Seu estranho distúrbio foi logo percebido pelos coleguinhas do Jardim da Infância, quando Débora ganhou o apelido de Dévora, uma vingança pelo fato dela sempre devorar o lanche de todos eles. Às vezes nem o lanche da professora era poupado.

Como uma menina mirrada, no limiar da magreza, poderia comer tanto assim? Onde iriam parar aquelas dezenas de pães, quilos de carne, sacos de arroz e estoques de biscoitos que daria para abastecer todas as creches América Latina?

Sua mãe levou-a a médicos incontáveis vezes, mas nenhum decifrou o problema. Tentou-se de tudo: anti vermes, simpatia, reza braba, redutor de apetite tarja preta e até mesmo falar porquice na hora da refeição pra ver se ela perdia a fome, mas era tudo em vão.

Um dia, num almoço de domingo, seu padrinho, inconformado, falou para ela assim que pôs a comida na mesa:

– Hoje eu fiz um almoço especial para você. Costela assada de dragão venenoso da Tasmânia, coberta com molho de língua de lagarta podre e orelha de sapo zarolho, servida com salada azeda de ‘comigo ninguém pode’ e suco de jiló com pimenta malagueta!

– Oba! Respondeu Dévora, a pequena draga.

Nada a demovia da prazerosa tarefa de devorar o que lhe aparecia pela frente. O que lhe aparecia, lhe apetecia.

A Câmara Municipal da cidade chegou a propor uma lei para expulsar a pequena draga, receosa de que ela dizimasse toda a produção de alimentos da cidade, mas o projeto sumiu misteriosamente dos arquivos. Dizem que Dévora comeu todos os projetos de lei num acesso de fome incontrolável numa noite de inverno.

Acontece que o destino tem seus caprichos, e um dia um cientista maluco deu de ter seu carro quebrado justamente nas proximidades daquela pacata cidade, e acabou ouvindo o curioso caso da pequena Dévora, que por essa altura, adolescente, já nem era tão pequena assim, até tinha ganhado uma discreta protuberância glútea, mas continuava magra e com uma voracidade ainda mais assustadora.

O cientista se interessou pelo caso e decidiu conhecer a menina (não antes de esperá-la devorar sua quarta jaca de sobremesa).

Intrigado com o curioso caso, o cientista prometeu à família que levaria Dévora para a capital, onde em laboratórios sofisticados poderia fazer os exames que pudessem diagnosticar e tratar adequadamente a disfunção.

Só que ele também abrigava um monstro e suas intenções eram bastante malévolas. Ele pretendia utilizar a fúria devoradora da pequena Dévora para construir um império global de eliminação de objetos indesejáveis, como baterias de celulares, pilhas enferrujadas, sucatas de carros Lada, CDs do Michel Teló e sucatas em geral.

Dévora Corporation. Não jogue fora, Dévora devora.

Tudo em nome da sustentabilidade.

No começo parecia uma tarefa impossível ela engolir tudo aquilo, mas logo o cientista descobriu que se passasse Nutella ou Leite condensado nesses mais obtusos objetos a pequena Dévora daria conta de tudo dragar.

Mas Dévora estava ficando triste com sua situação, feito pássaro engaiolado. O cientista apenas dizia que ela reclamava de barriga cheia. E não era apenas Dévora que andava chateada, mas o pequeno monstro sugador de coisas que habitava suas entranhas, entristecido com a situação de sua hospedadora fiel e infeliz com a piora súbita na sua dieta alimentar.

E eis que numa manhã nublada Dévora começou a passar muito mal até expelir o monstro que a habitava, que ganhando vida própria Devorou o cientista malévolo numa bocada feroz e instantânea, se transformando logo a seguir num lindo príncipe encantado.

Ele é Devora tiveram uma paixão repentina e monstruosa, e famintos um pelo outro, viveram felizes para sempre.

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