Dourada escravidão – Desabafo de um workaholic

Demorou, mas eu consegui construir minha casa. Própria. Como eu imaginava e queria. Prontinha e até poucos meses atrás cheirando a tinta. Tem até uma biblioteca, porque eu amo livros.

Minha biblioteca ainda é pequena, mas já conta com um par de centenas de livros, dos quais quase metade eu ainda não consegui ler, embora deseje ardentemente lê-los, todos.

Também tenho uma guitarra importada vermelho reluzente, de boa procedência. Minto, tenho duas, porque adicionei mais uma (essa ainda melhor) à coleção, numa viagem à Nova York uns 2 anos atrás.

Não sou cinéfilo, mas devo ter em DVD as temporadas completas das (poucas) séries que verdadeiramente gosto.

Já conheci dezenas de países, alguns diversas vezes.

Tenho um sobrinho que eu adoro, tem 4 anos e fica mais esperto a cada dia que passa.

Mas tem alguma coisa errada, muito errada. Eu trabalho demais. É bem mais do que você pensa. É muito mais do que seria saudável. Às vezes tenho vergonha de dizer, parece irreal…

Li num livro que os escravos antigamente trabalhavam 13, 14, 15 horas por dia. Tenho trabalhado costumeiramente 16, 17, 18 horas por dia de vez em quando, e nem tão raro assim quanto você pense. Já trabalhei 26 horas ininterruptas, e já fiquei quase 1 semestre sem domingos. Tenho algum conforto e alguma estabilidade financeira. Mato vários monstros por dia (saudade daqueles tempos de sossego, em que só tinha 1 leão por dia para matar).

Só chego na minha sonhada casa exausto, usufruo do chuveiro e da janta requentada no microondas. Não mais que isso. O cansaço não me deixa ler mais que alguns parágrafos do livro do momento. Durmo pouco, porque deito tarde e acordo bem cedo para fazer inglês, atividade voluntária, reunião, ou o que for o prato matinal da minha jornada extenuante.

Não tenho tempo de ler os livros que comprei, nem mesmo aquele fininho que fala sobre gerenciamento do tempo e qualidade de vida.

Minhas guitarras costumam ter as cordas enferrujadas, porque não tenho tempo de tocá-las, amantes solitárias em nossa união desafinada.

Já rodei meio mundo, mas tem faltado tempo para dar meia volta no quarteirão.

Não sobra tempo para eu acompanhar o desenvolvimento do meu sobrinho. E o tempo passa voando, não foi?

Sinto falta do tempo em que não tinha quase nada de tudo isso, mas tinha tempo para sonhar, e curtir o pouco que tinha.

E juro de verdade que nem sou materialista. Das conquistas, além das viagens, as que mais me agradam são a música, a rede na varanda e os livros.

Talvez seja alguma forma de escravidão essa que me meti. Dourada de dar dó.

Ok, tá certo, eu reconheço que não posso ficar impunemente me comparando a escravos, tendo alcaparras de sobra para jogar em cima do salmão grelhado, enquanto a crise ceifa milhões de empregos, a fome tira vidas, e um monte de moleque de talento não tem uma guitarra velha para desenvolver o dom que eu provavelmente não tenho. Sei que a qualquer momento algum Deus em fúria pode lançar um raio sobre minha cabeça obtusa, rachando-a ao meio.

Mas é que estou começando a achar caro demais o ingresso para essa Disneylândia prometida que nunca abre seus portões…

Gostaria de continuar escrevendo, mas meu Nextel está tocando e preciso voltar para o trabalho…

(Esse texto foi escrito há mais de 5 anos, num dos muitos auges de stress por sobrecarga de trabalho. Quase não postei, porque acho ele muito deprê e confessional. Ainda trabalho muito, mas não dá para comparar. Tenho a vida mais equilibrada, faço esportes, leio bastante, durmo mais e tenho curtido muuuito o meu filho, que fará 3 anos brevemente. Se serve de lição, é sempre possível sair dos buracos que a gente mesmo cavou.)

 

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