Morto

morto margaridas amarelasMorri ontem à noite.

É engraçado. A gente projeta vida e morte como eventos grandiosos, cercados com a pompa épica dos grandes acontecimentos.

Imaginava que fosse morrer num desastre trágico de avião na rota Nova York – Paris, num enfarte fulminante no meio de uma sessão de sexo selvagem com alguma atriz global, lutando heroicamente contra insurgentes hermanos que tentavam anexar o Rio Grande do Sul à República Argentina ou, em sua versão mais bucólica, já octogenário, durante um cochilo numa rede amarrada entre duas palmeiras na ilha de Phi Phi na Tailândia.

Mas quis o destino morte mais insólita e desprovida de glamour.

Chegando do trabalho, escorreguei no cocô do cachorro e bati com a nuca no degrau da porta de entrada. Bati as bostas.

Mas pior do que morrer na merda, é morrer tão novo. Tantos projetos pela metade, tantos sonhos por realizar. Pelo menos não terei que pagar as 48 prestações do financiamento do carro. Sobrou pra Gerusa.

Morrer sem planejamento é muito ruim, deveria ser proibido. Até para passar um final de semana em Ubatuba você precisa se organizar, como é que parte desta para melhor – ou pior, não descobri ainda – sem um mínimo de preparação?

A gente devia também poder trazer “pro lado de cá” uma maletinha pequena com alguns objetos pessoais. Não estou falando de dinheiro ou itens caros, porque nunca os tive mesmo, mas coisas que não farão mais sentido permanecerem do lado de lá. Cuecas puídas, vídeos de baixaria que os amigos mandam e você guarda escondidos no computador, canhotos de ingressos de shows de bandas decrépitas e tentativas mal sucedidas de fazer poemas. Objetos que indignificam ainda mais sua medíocre passagem pela Terra. Mas pra quem morreu no cocô do cachorro, não há mesmo dignidade a pleitear.

Agora tá ali o povo todo reunido no meu velório. Meu corpo pálido e inchado decorado com flores de gosto bastante duvidoso. Que droga, eu sempre disse pra Gerusa que odeio margaridas amarelas. Não basta estar morto, ainda precisa adornar meu rosto como se fosse um presunto silvestre?

Do escritório foi quase todo mundo. Alguns amigos de infância. Quase toda a família. Um mundaréu de gente. Nem imaginava que era tão popular. Se estivesse vivo estaria morto de felicidade. Não me visitavam, não lembravam do meu aniversário e agora ali, chorando e dizendo palavras de condolências para a família. Aliás, além da conta. O filho duma égua do Almeida tá consolando a Gerusa de um jeito bastante suspeito, quase encoxando. Vontade de tacar esse castiçal de prata mal polida na testa desse cabra sem vergonha.

Mas não dá mais. Let it be. Morri e agora é Zé Fini.

Estou indo embora. John Lennon, Mussum e Cazuza montaram um grupo de pagode e não perco esse show nem morto.

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