O baú

o bauErgueu-se não sem algum esforço, desvencilhando-se do pesado edredon que o prendia ao leito de mogno. A tosse seca parecia ter-se instalado em seu peito como inquilina que não paga aluguel. No inverno tudo ficava um pouco pior.

De uns meses para cá sentia que o fardo da vida acumulava-se sob suas costas arquejadas como água na esponja encharcada.

Pensou em tirar o pijama, colocar uma roupa e sair para ver se o barulho da rua o faria esquecer das dores de sua permanência extemporânea, mas a visão repentina da caixa de madeira deteve-lhe o intento.

Era seu velho baú, há muito esquecido, talvez pela montanha de panos, roupas e badulaques que se acumulavam sobre ele, não permitindo divisar onde começavam suas figuras entalhadas nem onde terminava o desleixo que reinava soberano naquele quarto.

Derrubou com um tapa convicto a pilha de panos e entregou-se à tarefa de pesquisar objetos antigos, como um arqueólogo que busca vestígios da própria vida através de quinquilharias que sedimentam eras.

Abriu a pesada porta do baú, dessas que não se fazem mais. Forte, maciça, um arborecídio para os padrões atuais.

Roupas antigas, revistas, brinquedos, cadernos, estilingue… a poeira dos tempos fugia do baú apressada, como um condenado que sai da cela pra ver o sol, piorando ainda mais a tosse crônica do ancião.

Curvou-se para vasculhar o fundo do baú e num descuido caiu para dentro, numa queda vertiginosa e descontrolada. Como nunca percebeu que aquele baú não tinha fundo nem fim?

Mas ele apenas caía, como chuva das cinco em Belém. Esborrachou-se pateticamente no quintal da sua avó, esfolando cotovelos e joelhos, sob os risos dos colegas que chutavam bola no quintal de grama mal cortada, enquanto ele se empenhava em colher jabuticabas maduras ao pé da árvore.

Mas foi sua visão que lhe causou torpor. Ali tímida, atrás da árvore. Conseguia lembrar daquela cena antiga com a vividez das coisas recentes. Na história de suas retinas cansadas já enviara ao lixo de suas memórias a quase totalidade de sua existência, condenada à repetição enfadonha de acontecimentos sem importância, mas esse dia definitivamente não.

Ainda que implorasse ao destino a mais generosa das sortes, não poderia desejar nada melhor do que viver pela segunda vez aquela primeira vez.

Era como participar de um ensaio da própria vida. Já tinha decorado o roteiro, mas o nervosismo que sentia era o mesmo de antes. Caminhou com passos titubeantes, segurou-lhe os braços com uma certeza trêmula, e ante seu olhar algo assustado, nada mais disse, apenas roubou-lhe um beijo, um beijo doce de criança inocente, para então vê-la partir correndo pelo quintal, como da primeira vez.

A experiência o fez mergulhar numa vertigem incontrolável, como se tivesse sido expelido pelos ares em um foguete desgovernado. Voou pelo espaço até chegar à linha divisória das duas dimensões. Do lado de fora do baú, seu velho quarto, suas coisas, sua cama desarrumada. Do lado de dentro, o tempo findo em suspensão, o quintal da sua avó, sua vertigem pessoal.

Fechando pra sempre a pesada porta de madeira que separava seus mundos, mergulhou convicto de volta para dentro do baú.

No dia seguinte encontraram o vovô imóvel, passeando pela eternidade, com os cotovelos esfolados, uma mancha de jabuticaba no pijama de cinza seda e um sorriso de moleque estampado no rosto.

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