O homem e o menino

O homem e o menino

O homem e o menino

Saíra da pequena cidade ainda menino, logo que a morte do pai impôs à família a dura realidade de ganhar o pão de toda manhã. Era preciso buscar emprego e educação, e a pacata cidade não tinha muito a oferecer em sua limitada mistura de beleza bucólica e fazendas decrépitas.

Na capital, virou-se, graduou-se, mestrou-se. Subiu degrau por degrau o panteão do mundo corporativo. Virou um bem sucedido executivo de multinacional.

O que a carreira tirava-lhe de sossego e fígado retribuía generosamente em bônus, benefícios e a adrenalina de um amanhã sem hoje.

Mas apesar de todo o sucesso, e da cobiçada vida entre aeroportos do mundo todo, aos poucos um desejo começava a incomodar-lhe: a vontade de volver a sua (quase) esquecida terra natal. Algo não muito racional nem tampouco comum para alguém tão cartesiano como ele.

Seja como for, permitiu-se o luxo de passar alguns dias longe do luxo de sua rotina dourada.  Entrou no carro e enfrentou a longa estrada que o conduziria de volta ao passado de menino.

Um misto de emoção (esse sentimento há tanto esquecido) e desapontamento foi-lhe tomando o peito. Estava tudo ali, de uma maneira profundamente familiar – a cidade não mudara tanto assim nessas últimas décadas – mas de alguma forma chocantemente alterada. O mesmo de antes, mas não exatamente como antes. Como reencontrar um velho amigo depois de muito tempo. Ainda o mesmo; nunca mais o mesmo. Tudo mais ou menos igual, mas apenas o suficiente para se intuir o desmoronamento iminente.

As ruas despertavam-lhe lembranças há muito esquecidas, largadas num canto traiçoeiro qualquer da mente, e que agora acordavam vívidas, em tons de verde, azul e jasmim. E o horrendo galpão era apenas um campinho improvisado, no qual o menino franzino corria descalço em busca do gol redentor na demarcação perfeita do surrado par de havaianas azuis.

O enorme templo religioso era então o imponente cinema onde cultuavam as deusas e deuses da tela e ensaiavam os primeiros flertes e namoros. Inocentes e felizes tempos, aqueles.

Doeu não ver o casarão da Tia Helena, reduto das mais felizes férias de verão da história, regadas a mangueira, groselha e bolo de fubá, agora transformado num espichado edifício comercial em estilo neo-feio. Nem a sua provinciana cidade escapara das marcas indeléveis do crescimento. O passado decadente substituído pelo presente sem alma.

A cidade estava muito maior, mas caótica, mal cuidada. O ar bucólico tinha sido substituído por um crescimento desordenado, tornando feio que já fora um dia pura poesia.

Mas nossas raízes são como nossos filhos, não importa se são feios, estrábicos ou gagos. São nossos filhos e isso já é razão suficiente para amá-los incondicionalmente. De alguma forma inesperada e involuntária para um executivo tão pragmático e cosmopolita, sentia-se estranhamente ligado a sua terra.

Uma fenda enorme se abria, entre as reminiscências pálidas de sua memória de infância e a crueza cinzenta da realidade que se impunha.

Reservou o fim do dia para uma visita à sua antiga escola, palco de alguns dos mais importantes momentos da sua imberbe vida.

A imponente escadaria de antes parecia agora irremediavelmente reduzida à insignificância de uma escada comum, feita de cimento, granito e desmemórias. Subiu-a lenta e reverentemente, degrau por degrau, como quem participa de um culto religioso.

Ao cruzar o portão de entrada, sentiu uma espécie de transe. Incapaz de andar com as próprias pernas, como se sua alma renunciasse ao próprio corpo e tivesse se tornado um mero expectador de si mesmo.
Não era mais possível distinguir o homem do menino que um dia ali abandonara amigos, professores e primos.

Certas portas nunca devem ser abertas.

E num torpor incontrolável, foi tomado por lembranças de tudo o que passara ali, revivendo cada momento com um realismo de latejar a alma.

Lembrou que não tinha virado jogador de futebol (sequer tinha tentado sê-lo), nem cientista, nem poeta. Lembrou que nunca mais pescara, correra na grama ou tomara banho pelado de rio gelado no inverno. Cortara os laços com os amigos, nem sabe exatamente por que (justo ele, amante da exatidão!). Sequer honrara a pueril promessa de desposar Fabiana, que agora dolorosa e estranhamente lhe parecia ter sido a mulher da sua vida.

Não fora, não tentara, não realizara. E nenhuma dor pode ser maior do que a dor de não ser quem somos.

Atordoado, saiu daquela escola primária se sentindo um ancião, sufocado pelo peso de sua própria história incumprida.

E então desabou. Chorou seu choro represado por décadas. Chorou os sonhos invividos, os amores esquecidos, os planos destraçados. Chorou o fracasso retumbante de seu brilhante sucesso. E soluçou como se não houvesse mais amanhã, cada vez mais alto, como se pudesse acordar de algum jeito, a criança que jazia insepulta, no fundo do seu peito.

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