Palavras e letras

desenho em cavernas

 

Alguém já disse que o português é uma das línguas mais difíceis do mundo, com suas conjugações verbais mais que imperfeitas e suas infindáveis regras gramaticais recheadas de exceções (é assim mesmo que se escreve exceção?). Não é a toa que pra muita gente aula de português é uma sessão de tortura. Sessão com três esses, porque cessão com dois esses é o ato de ceder e seção com um esse denomina o pedaço de um todo, como a seção de um supermercado. Português é assim, cheio de armadilhas, como esses S’s, e raros são os que a dominam em sua plenitude.

Apesar disso, tendo a achar que a língua mais difícil é o mandarim chinês, com sua extensa alegoria de pictogramas indecifráveis. Chinês pra mim é grego.

Veja como seria difícil escrever uma simples frase de cartilha infantil, “o rato roeu a roupa do rei de Roma”:

鼠標啃羅馬王的衣服

Mesmo assim, todos os pequenos Xing Ling’s sabem descrever a saga do rato romano desde os primeiros anos da escola.

Uma das coisas que talvez torne o português mais complexo são as mutações periódicas que a língua sofre. Basta comparar o idioma brasileiro com o lusitano para percebermos a quantidade de diferenças que foram sendo construídas ao longo dos séculos. Café da manhã para brasileiros, pequeno almoço para os patrícios. Trem aqui, comboio lá. Veste- se terno aqui, lá veste-se um fato. Fila aqui, bicha lá. A grafia também varia um bocado: Bebê lá se grafa bebé. Contato é contacto. E a lista segue interminável, ora pois. Você se surpreenderia ao notar tantas diferenças. Aliás, tu te surpreenderias, já que você é uma palavra praticamente inexistente em Portugal, seja na forma oral ou escrita, já totalmente substituída pelas formas tu, si e consigo.

Supermercado do Joaquim. A melhor opção para si.

Banco Popular. Sempre consigo.

Mas nada pode ser pior do que essas reformas ortográficas. Você leva uma vida inteira decorando regras, decifrando tremas, ditongos e hífens e subitamente um corpo de letrados resolve acabar, de canetada, com tudo o que você pensava que sabia.

E tiram os tremas das linguiças e da sua tranquilidade.

E extirpam os circunflexos dos seus voos.

E somem com os acentos das europeias.

Tá certo que a língua é um organismo vivo que precisa evoluir junto com os costumes, por isso não compramos mais em pharmacias. Mas quem teve a idéia de jerico (jerico é com jota ou com gê?) de tirar o acento das ideias?

Não é apenas além mar, Alentejo e além tempo que essas variações se pronunciam.

Por aqui mesmo, periodicamente temos que digerir modismos lingüísticos de gosto bastante duvidoso.

Já tivemos o gerundismo dos atendentes de telemarketing:

– A gente vai estar lhe oferecendo uma proposta imperdível.

– E eu vou estar lhe oferecendo um curso de Português !

Tenho notado também, principalmente no baixo clero empresarial uma insuportável tendência de grafar todas as iniciais de palavras em caixa alta, como se o uso da maiúscula pudesse transmutar a pequenez do argumento:

Reunião Operacional Hoje As 10:00 Na Sala do Departamento de Produção.

De onde surgiu esse fetiche maiúsculo?

Na sua variação mais radical, andam grafando a frase inteira em caixa alta, talvez como forma de alertar o interlocutor para a relevância da mensagem.

APÓS O USO, FAVOR DAR A DESCARGA.

Mas tudo isso é fichinha perto do que o internetismo vem provocando no modo como nos expressamos no ambiente virtual.

Você virou vc, qualquer virou qq, Felicidade virou kkkkk, Obrigado virou vlw, e tchau virou té+ .

Compreensível. Na internet qualquer atalho que permita se comunicar de forma mais veloz é imediatamente adotado.

Escrever cartas, esse sepulto hábito milenar do qual foi um dos últimos praticantes, era como ourivesaria, artesanato, você escrevia, revisava, corrigia. Escrever no mundo virtual é outra coisa, meio como fazer miojo, o mais importante é não interromper o fluxo incessante de bits.

O problema se agiganta quando não divisamos mais a linha que separa uma mensagem de celular de uma comunicação escrita com um mínimo de formalidade, ou quando as pessoas não conseguem mais interpretar um texto com um mínimo de densidade.

Mas regozijo-me de ainda usarmos letras e palavras com tanta freqüência, como a palavra “regozijo”, que talvez só eu ainda use, desde que Rui Barbosa faleceu em 1923.

Quando vejo essa sanha de síntese e a profusão de áudios, vídeos, selfies e fotos que produzimos para nos comunicar fico imaginando se não caminhamos para uma moderna sociedade pictórica, que se comunica por ícones, fotos, emoticons e símbolos, tal qual aqueles povos primitivos que para se comunicar esculpiam símbolos nas cavernas porque não tinham ainda criado as palavras e letras que hoje, aos poucos, sem perceber, tentamos sepultar.

🙂

 

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