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Posso olhar o carro, Doutor?

– Posso olhar o carro, Doutor?

Assenti com a cabeça em ato reflexo, como sempre fazemos nessas situações, mais por medo de uma possível represália do que pelo desejo genuíno de ajudar ou pela imprescindibilidade do serviço ofertado.

Mas daquela vez algo estranhamente familiar me chamou a atenção naquela face chupada, corpo esquálido tatuado e um sorriso algo acanhado deixando entrever a falta de alguns dentes.
Sim, era ele! Um cara super popular na minha época de escola, descolado, namorador e que antes dos 16 anos costumava aparecer na escola (quando aparecia na escola) empinando uma Yamaha DT180.

O abismo entre a lembrança de antes e a fotografia do hoje me assustaram. O que houve na trajetória dele para chegar a esse ponto da decrepitude? Certamente muito mais do que eu poderia supor, mas ao menos um traço parecia um bocado evidente: o uso de crack, droga barata, que dá um grande barato mas custa muito caro aos usuários.

Ano passado tive um compromisso profissional numa empresa no centro de São Paulo. Quando passei em frente à Praça Santa Isabel, tive um choque. A praça tinha virado um acampamento de drogados, logo após algumas ações da Prefeitura na região da chamada cracolândia. Parecia um cenário de filme de terror. Centenas e centenas de zumbis, simulacros mal acabados de seres humanos, zanzando atônitos e aos bandos, alheios ao mundo.

Não é de hoje que os seres humanos experimentam o poder das substâncias alucinógenas. Milênios atrás, na África Central, tribos descobriram por casualidade os poderes de uma árvore chamada Tabernanthe iboga. Logo os curandeiros locais começaram a venerar a planta, por acreditar que ela seria habitada por divindades mágicas.

Na Grécia Antiga, relatos narram a queima da planta da maconha em saunas públicas, para provocar euforia nos usuários. Uma sauna muito louca.

Os sumérios usavam o ópio cinco mil anos antes de Cristo e dizem que a cerveja foi inventada antes mesmo da roda.

Estudos de organizações internacionais estimam que centenas de milhões de pessoas sejam usuárias de substâncias ilegais em todo o mundo (algumas das quais estão começando a se transformar em substâncias “legais”). E se formos incluir na conta as drogais “legais” ou “sociais”, como o Álcool, essa conta fica ainda maior.

E se no passado as drogas eram substâncias encontradas na natureza, o futuro parece apontar para aquelas sintetizadas em laboratório, cujos efeitos podem ser ainda mais destruidores do que o das drogas já conhecidas.

Nossa biologia é vítima fácil dos sistemas de recompensa que a droga aciona, com grande liberação de dopamina, que gera sensação de prazer e reforça a busca de mais do mesmo, em doses cada vez maiores para produzir o mesmo efeito. E quanto maior a dose, maior o risco da overdose. Sexo e comida podem também produzir efeitos parecidos (não é à toa que há viciados em ambas as coisas), mas a sensação de saciedade que se segue ao consumo costuma atenuar o problema.

Nem todo mundo que usa drogas se tornará um dependente, mas como a gente nunca sabe quem tem a genética mais inclinada ao vício, o melhor é fugir delas, se possível até mesmo das drogas lícitas. Licitas ou não, elas não se chamam “drogas” por mera coincidência.

Nunca se sabe quem será o próximo morador de rua, vigiando carros para obter as moedas com as quais comprará uma dose a mais daquilo que lentamente lhe tira o pouco que ainda lhe resta.

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